Painel na COP30 reuniu visões da ciência, governo, setor privado e empreendedores para discutir caminhos que fortaleçam quem está na base das cadeias produtivas na Amazônia

O painel “Bioeconomia: alavancando cadeias produtivas da sociobiodiversidade”, realizado na Casa da Biodiversidade e Clima, colocou no centro do debate a pergunta-chave: como transformar o potencial da floresta em renda, conservação e qualidade de vida para quem vive nos territórios? Márcia Soares, gerente de Amazônia e Parcerias do Fundo Vale e moderadora do encontro, resumiu o desafio: “Se não estruturarmos a base das cadeias – quem planta, extrai, transforma e vive nas unidades de conservação e nas cidades amazônicas – não vamos chegar ao potencial bilionário da bioeconomia”.
Na perspectiva da ciência, Graça Ferraz, pesquisadora titular do Instituto Tecnológico Vale (ITV) e líder do grupo Territórios e Recursos Naturais, apresentou o projeto Tucupi de Belém, parte de um estudo sobre bioeconomia. O trabalho nasceu do projeto Genômica da Biodiversidade, iniciado na Resex Caeté‑Peraçu, e elegeu o tucupi como objeto de estudo de forma estratégica, pela visibilidade do ingrediente na COP30 e pela relevância da mandioca frente às mudanças climáticas.
“O tucupi é um patrimônio gastronômico e cultural do Pará, uma cadeia consolidada que conecta natureza e saberes tradicionais”, afirmou. Ela apontou a falta de dados sobre produção e trabalhadores como entrave e defendeu o uso de indicações geográficas e marcas coletivas para proteger o tucupi de Belém. A proposta inclui uma indicação geográfica que reconhece o território e os diferentes agentes da cadeia: pequenos produtores, tacacazeiras e pessoas que vendem o produto em mercados populares.
Do lado governamental, Tatiana Heder, analista ambiental do ICMBio e coordenadora responsável por acesso a políticas públicas e promoção das economias da sociodiversidade, apresentou o CIS Famílias, sistema que já mapeia cerca de 90 mil famílias (349 mil pessoas) em 350 unidades de conservação, com dados de localização, acesso a água, educação, documentação e vulnerabilidade climática. “Sem internet, sem luz, sem água, a gente não tem como promover a economia dessas famílias”, reforçou, ao defender que infraestrutura social e regularização de dados (CadÚnico, CAF) são pré-condição para qualquer investimento produtivo ter cobertura efetiva.
Uma das apostas do ICMBio para qualificar o território é a juventude: “Nós estamos contratando jovens das próprias comunidades para levantar dados, organizar associações e apoiar o acesso às políticas. Quando eles entendem que essas políticas são fruto da luta dos pais e avós, eles começam a enxergar outra perspectiva de atuação no território”. Para Tatiana, o Estado precisa também rever a lógica da assistência técnica: “Quem é formado nas grandes universidades não conhece essa diversidade. A gente precisa construir reconhecimento acadêmico dos saberes locais e formar extensionistas das próprias comunidades”, pontuou.
Representando o setor privado, Izabella Gomes, coordenadora de sustentabilidade da Natura, descreveu o papel das empresas como catalisadoras da socioeconomia amazônica. Com 25 anos de atuação na região, a companhia hoje utiliza 46 ingredientes amazônicos em mais de mil produtos, em parceria com 45 comunidades, beneficiando mais de 10 mil famílias e contribuindo para preservar mais de 2 milhões de hectares.
Izabella destacou o mecanismo de financiamento Amazônia Viva, que combina crédito via CRA e um fundo não reembolsável: “Não é só emprestar crédito. O diferencial da nossa adimplência de 100% é a assistência técnica, principalmente financeira, para que as comunidades entendam sua própria realidade econômica”.
A painelista também relatou a criação de um programa de jovens lideranças em 18 comunidades: “Os jovens falam: ‘Eu quero continuar trabalhando com a sociobiodiversidade, mas eu não quero ser igual ao meu pai. Eu quero ter acesso à tecnologia, quero entender contrato’”. Segundo ela, trazer profissionais da própria região para a linha de frente aumenta a identificação e a capacidade de cobertura do programa. O mecanismo já alavancou R$ 26 milhões em três anos, dos quais R$ 13 milhões em crédito para 15 comunidades, e busca agora ampliar o impacto para além das cadeias de fornecimento da Natura, alcançando outras espécies e modelos produtivos.
Na ponta do empreendedorismo, Vivian Chun, empreendedora à frente da Moma – marca de cosméticos feitos com ingredientes amazônicos – e diretora de relacionamento da Assobio (Associação de Negócios da Bioeconomia da Amazônia), trouxe a visão de quem transforma insumo florestal em produto de mercado: “Hoje a ASSOBIO tem 126 negócios associados, que juntos geram R$ 52 milhões por ano, impactando 70 mil pessoas e mais de mil empregos”, relatou. A maioria dos empreendimentos é jovem – 71% dos CNPJs nasceram a partir de 2018 – e opera em múltiplas cadeias de alimentos, cosméticos, artesanato, turismo e serviços.
Vivian apontou três travas centrais: “O pequeno empreendedor domina o produto, mas não domina plano de negócios, contabilidade, crédito. O acesso a financiamento ainda fala a língua dos grandes; o varejo prefere apostar em marcas conhecidas; e educar o consumidor sobre ingredientes amazônicos é caro”.
Graça concluiu o debate destacando que ampliar a cobertura das soluções – em dados, financiamento, assistência técnica, mercados e educação do consumidor – exige olhar para a base das cadeias. “Fortalecer cadeias da sociobiodiversidade significa fortalecer as pessoas que mantêm a floresta em pé”, afirmou, lembrando que muitas comunidades seguem sem energia, água potável, saneamento e perspectivas para a juventude.
Para a pesquisadora, a combinação entre ciência centrada em pessoas, políticas que sabem chegar ao território, instrumentos financeiros adaptados e empreendedorismo local é o caminho para uma bioeconomia que una escala e justiça social: “Quando a inovação considera quem vive na floresta, na beira do rio e na periferia, a bioeconomia deixa de ser promessa e vira projeto de país”.